Vai antes buscar um par de olhos
ao fundo da tua alma e põe-nos ao peito
— então saberás o que aqui se dá a ver.

Paul Celan

           Espera-se de mim que diga nestas linhas algo de relevante acerca das obras fotográficas que compõem este livro, bem como, em geral, da obra do seu autor. Uma tarefa prática como esta facilmente cai num exercício, por assim dizer, competente, mas insignificante, se me limitar a compor um apêndice que repete os lugares-comuns esperados por um público especializado em fotografia, isto é, se me limitar a enumerar aquilo que todos, mais ou menos, já sabem, público esse familiarizado com os discursos que sobre ela se vão produzindo e que enquadram as obras (e os autores) nas diversas tendências e tipologias de produção do mundo da arte. Por pueril que seja o debate sobre se a arte dispensa ou não os discursos em seu torno, se a arte deve, ou não, ser antes um mundo imersivo no qual entramos, mais abismados, ou menos abismados, e sobretudo para nosso puro prazer, este é um tema que obrigatoriamente mantenho vivo quando sobre ela escrevo. A relevância do discurso, tanto para o enquadramento teórico das obras propriamente ditas, como para a riqueza da experiência de quem as vê e me lê é, assim, um alvo que assombra as minhas reflexões à medida que procuro iluminá-las com a produção de um discurso. E a resposta que dou ao teor daquele debate acaba por ser sempre um sim, isto é, digo sim a todos os sins e nãos que esta problemática suscita. A arte precisa do discurso? — Sim! A arte dispensa o discurso? — Sim! Que seriedade pode ter o discurso sobre arte? — Toda e nenhuma. A frase de Paul Celan que antecede estas linhas identifica com clareza aquilo de que precisamos para caminhar em direcção ao discurso relevante e à aquisição (se de antemão não a temos) da faculdade de saber alguma coisa: metaforicamente, devemos colocar ao peito esse par de olhos trazido do fundo da nossa alma. Mas usei aquelas palavras de Celan também para duvidar daquilo que, no final, este poeta enorme diz, pois em mim vive também a robusta impressão de ser impossível saber o que uma obra de arte dá efectivamente a ver. Todo o movimento que, com todo o rigor, se direcciona ao discurso, respeita, de algum modo, um sistema fundado mais na crença do que na razão, o que equivale a dizer que um apriorismo arreigado serve de guia ao discurso colocado em marcha para chegar a um lugar, por assim dizer, seguro. Este lugar não é mais do que a consumação da ideia de que uma determinada premissa exige a conclusão que lhe corresponde. Mais do que a própria lógica discursiva, são, pois, a crença e as prévias convicções a sustentar e tornar coeso o discurso. É nestas condições que a lógica se acomoda sem ser lesada. Mas esta é uma severa dificuldade para o escritor descrente, pouco convicto e com reduzidas certezas, como eu. Em tudo o que é não-discursivo haverá também saber, e há, sem dúvida, um saber que penetra em nós quando damos o nosso tempo de vida à fruição de uma obra de arte: trata-se de uma experiência íntima. Esta interioridade não é o saber daquilo que a obra dá a ver, esse permanece inacessível e indecifrável na obra. Quando muito, podemos enumerar os componentes do objecto que vemos e descrever objectivamente o modo como os mostra. Este é um saber que de nós provem, um saber que resulta da experiência de um eu imersivo no acto de reduzir a dimensão daquilo que não sabe, porque, em certa medida, o eu modifica-se, mesmo que discretamente, ao ver a obra. A relevância da obra poderia ser até avaliada na medida do quanto me muda. Este é, portanto, através da arte, um saber de si mesmo.

           Contactei em diferentes momentos da minha vida com muitas das obras presentes neste livro do David Infante. É, portanto, com a consciência de ter uma história pessoal que se relaciona com elas que, por ocasião da edição deste livro, dirijo novamente um olhar interior à memória do que vi. Neste revisitar que é um rever sem visão, elaboro um intricado desfile de seres, seus reflexos e sombras; de areia, terra, atmosfera e grão (fotográfico); de água, gelo, liquefacção e solidificação; de rumos, estradas, rastos e rasuras no perto e no longe; e dou por mim envolto num estranho exercício de panteonímia. Na minha memória desfilam de novo estas imagens. Numa, o grão dos sais foto-sensíveis confunde-se com os grãos de areia da praia por ele reproduzidos. E é tão belo este grão que reproduz algo tão similar a si próprio que pode dizer-se que, a um nível simbólico, o grão da fotografia procura penetrar a realidade de que é índice, para a trazer, enquanto materialidade, para a estrutura da realidade da arte. Este é o mesmo grão que, igualando os valores tonais da atmosfera e do solo, derrama aquela sobre este. É uma fusão improvável — a linha do horizonte que esperávamos ver na margem daquela franja de mar, dissolve-se, desaparece: céu e solo passam a ser o mesmo. À linha de horizonte resta, assim, ser apenas separação de água e de ar, isto é, dos elementos onde nenhuns pés se fincam. Noutra paisagem, o grão reproduz um areal entrecruzado pela convergência, direccionada a um ponto de fuga, das marcas traçadas em linha recta pelos pneus de um veículo (ausente da imagem). O rasto foi interceptado e desfeito (por uma onda do mar?). Se assim foi, os dois protagonistas da cena (onda de mar e veículo) não figuram na imagem e ficamos perante a representação de uma acção passada na qual, contudo, não figuram os seus sujeitos.

           Esta temática de um percurso que se perde ou interrompe, ou o de um ser em movimento que se imobiliza, surge diferentemente tratado em outras obras do David Infante — na cobra serpeante imobilizada numa matéria granulosa, mas densa, difícil de identificar; nas paisagens alpinas cuja verticalidade se abisma numa faixa de nuvem ou sombra horizontal que oculta totalmente uma porção do olhar que ascende.

           O que é, afinal, esta ausência de uma presença que se intui? — A morte? — A fotografia representando-se a si própria?

           Mas rever interiormente estas imagens é alcançar um estado de olhar desfeito. O tempo dado anteriormente ao efectivo visionamento torna-se, neste íntimo acto, expansão. E se agora volto a olhar efectivamente estas imagens, não demoro a atingir o ponto em que a relação do olhar com a imagem já não é acto de ver, mas nova imersão vendada. Não que o olhar se tenha tornado irrelevante, nada disso — o olhar, mesmo exausto é, nestas condições, e a cada momento, inaugural. Ao intensificar-se, o olhar perde-se de si, imbuído que fica no silencioso e discreto devir do significante. Já não se trata então do olho, mas do búzio, e não é já com o visível que lido. Em primeiro lugar, lido com a curiosidade que aprisiona o olhar num objecto; em segundo lugar, suscitada, a curiosidade leva-me a procurar uma audibilidade na lonjura, simbolizada pela concavidade para lá da qual não se vê, uma audibilidade ténue (silenciada, talvez) intuída nestas obras. Os ouvidos enchem-se desse silêncio-de-ocos onde se abisma o visível, refazem caminhos ínvios, porque estas imagens são habitadas pelo invisível que é o silenciado que delas é capa. O invisível não se percorre, mas pode ser concebido como reinvenção em coisa-outra que, imaginária, se dirige ao leito, ao pélago a que se chega através do absurdo desta lupa que enquadra a concavidade do búzio.

           Noutras composições, naquelas que, ao primeiro contacto visual, talvez sejam as mais marcantes, a figura humana surge envolvida num aparato violento que ora é véu, ora é aparelho escultórico rudimentar, interposto entre o retratado e o retratista (e, por conseguinte, também entre ambos e o espectador da obra). Esta adição objectivamente absurda ao cenário e à caracterização dos retratados, é expressão de um sentimento de insuficiência, é dizer: ver o que as coisas aparentam ser não chega: semblante e olhar estão demasiado ligados à finíssima lâmina do momento (do presente) para poderem aspirar à representação da suposta verdade do ser. Estes objectos, estes véus, são, assim, incisão sobre a aparência do outro (e de si próprio), expressão frágil, angustiada, mas preciosa, de esperança: de que a acção inusitada possa inspirar a visão interior do espectador para os efectivos sinais, não da persona, mas do carácter único, desvelado, da vida interior dos seres representados na imagem. Imagens paradoxais, uma vez que resultam dos actos de ocultar e distorcer o visível para poderem mostrar o antes não visto, estas fotografias assumem-se como retratos sem retratística. Conscientes que estão, de antemão, da expressão da verdade como suplemento impossível da identidade (da impossibilidade do ar de Barthes), a sua é uma busca pela deliberada falha do propósito que nelas se intui, em nome da clarificação de uma posição moral perante o mundo humano e de uma posição ética perante a arte (fotográfica). Recusando, pois, ostensivamente, o exercício da exegese sobre o conteúdo obrigam, antes, à reconstituição imaginada do método, mostrando-o nessa decifração falhada: perante o desespero do gesto incisivo sobre a imagem, o ser permanece oculto, reafirmando no indecifrável o hermetismo do indivíduo. De todo o processo sobra, finalmente, o sinal de fé naquele que é o mais completo reduto da liberdade: cada mente humana, como entidade única. O momento só é decisivo porque é irreversível, não é decisivo na estetização de supostas verdades confluindo ao momento da captura.

           Nas imagens em que o David Infante recorre ao gelo como elemento substancial da composição e da acção, a distorção torna-se ainda mais violenta, e a reflexão sobre a ontologia do fotográfico também mais consciente e revoltada. A adição de matéria líquida, sua solidificação, extracção e liquefacção constituem, em sequência, o campo complexo de possibilidades visuais que conduziram a estas obras. O corte do tempo no processo equivale, aqui, a um vislumbre de sentido no metafórico a cuja riqueza não é alheia a inusitada literalidade do jogo linguístico. Vejamos: entendendo o espelho fotográfico sob a luz do discurso primeiro e primário sobre a fotografia [DUBOIS], estas fotografias mostram uma experiência de construção da imagem que usa o próprio gelo para voltar a congelar a imagem de um espaço-tempo. Aceitando, assim, o bordão de que a fotografia congela um espaço e um tempo, nestas fotografias o gelo é o espelho quebrado que, ao liquefazer, é também metáfora do esvaecer no tempo. O que no processo de construção da imagem vemos, objectivamente, como acto aditivo, interpretamos ao invés como decomposição em curso, nelas tudo é, portanto, ênfase da crítica da falsidade: do acto performativo, da pose construída dos retratados (numa certa falta de “naturalidade”), em alguns casos da dúvida quanto à sua efectiva presença perante o fotógrafo, em suma, da própria natureza do fotográfico enquanto espelho e vestígio do real.

           A arte fotográfica de David Infante evita ser testemunho da visualidade de uma realidade de si extrínseca, uma vez que não é directamente nesta que busca as fontes do seu acto de mostrar — prefere antes, a um tempo, dotar de matéria para no subsequente a subtrair, disso fazendo obra-registo do que logo se perde — as suas imagens são o restolho possível de esculturas fugazes, são assumidamente construção de realidade e não a sua mera reprodução.

Por Nuno Matos Duarte