Não nos apercebemos bem agora porque já a vimos demasiado e de demasiadas formas, em distintos géneros e registos, mas a fotografia serviu durante muito tempo uma função, não necessariamente assumida, de ordenamentodo visível, de catalogação, de levantamento e seriação tipológica, muito antes de tudo isto se ter tornado arte. Ordenar o visível éum dos usos primeiros da fotografia e que em si habita em latência. Como o bacilo adormecido, vem à tona mais numas do que noutras ocasiões, conforme as intenções de quem a usa.
Tendemos a olhar para a imagem fotográfica como repositório de ordenamento e lugar de composição, de composto e até de compostura. Em parte porque sabemos que está sempre ali a escolha, qualquer que ela seja, e com ela a concretização de uma vontade, de um fascínio, de um encantamento, de um trauma, de uma frustração. Ou a materialização do simples prazer de registar. Mas, no limite, sabemos que a escolha, pelo menos, ordena, compromete.
Habituados ao conforto do olhar disciplinado, mastigado e fácil, somos abanados sempre que se nos depara uma imagem que escapa a esse aprumo pré-concebido e preso à maldição documental no seu registo mais puro. Ou quando nos aparece diante dos olhos um conjunto de imagens que só em forma ou tonalidade podem ser de alguma maneira arrumadas no mesmo compartimento estanque. Quando não há uma fórmula que as una verdadeiramente. Quando cada uma depende de si e só vagamente encontra nas outras o conforto da companhia pelo tema ou a harmonia das intenções por uma paternidade comum. Quando desaparece a muleta da similitude.
Ao mesmo tempo, não é por causa dessa errância individualista – condição que de certa forma caracteriza a natureza de cada imagem fotográfica – que somos impedidos de ler o âmago da sua mensagem quando acompanhada. É certo que o diálogo se torna mais encurvado e a narrativa de conjunto menos linear. Mas também é certo que cada aproximação lado a lado, na parede, no chão ou na prova de contacto, revela, ou pelo menos denuncia, a intenção global do fotógrafo, qualquer que ela seja. E desse exercício nascem relações imprevistas e um sem-número de dinâmicas de relacionamento nem sempre guiadas pela harmonia ou pelo mero aprumo estético – quantas vezes não vencem a fractura, o devaneio, o rasgo; quantas vezes não se torna mágica e sedutora a simples luta entre claro/escuro. E não será na fricção de campos opostos e na mistura de realidades dispersas que vive uma das principais centelhas da criatividade?
Lembro-me da primeira vez que vi uma fotografia de David Infante. Vinha sozinha como anexo de um e-mail de divulgação de uma das suas exposições. Era uma imagem insólita, com um pendor surrealista. Havia um lençol branco estendido no ar que preenchia metade da imagem e tapava um corpo, menos as pernas, os braços e as mãos, que tentavam agarrar alguma coisa. O primeiro sentimento foi de estranheza e depois de curiosidade. Senti que aquela superfície branca me encandeava e não só me impedia de ver o que estava do lado de lá como me impedia de encontrar um sentido mais completo e profundo acerca daquela fotografia e das intenções de quem a tinha concebido. Por um lado emocionava-me, por outro causava-me atordoamento e desnorte, como se estivesse perdido no meio de nevoeiro cerrado. Era uma fotografia que, de forma isolada, carregava a força suficiente para me surpreender e, ao mesmo tempo, catalisava uma vontade de ver para lá dela, ainda que não soubesse exactamente para onde nem o quê.
Olhei agora outra vez para esse retrato de forte aparato cénico e encontrei nele as metáforas da ambiguidade, da sugestão e do simulacro que nos ajudam a compreender a prática fotográfica de David Infante e a situar o conjunto, parte ou a ínfima parte do seu trabalho criativo. Há nessa imagem um estímulo tríptico: os braços estendidos que rompem a candura e a planura do lençol são um convite a olhar para fora do quadrado quieto, para outras imagens, as suas ou as de outrem; o mistério sobre o que está por detrás desse manto branco, por si mesmo representação perfeita da superfície do papel fotográfico, é um convite a olhar para o interior desse labor criativo. E há depois uma mão de sombra projectada que tenta agarrar quem vê, como se fosse ela a única mão que abre a porta de acesso a esse “espaço fotográfico” e, por sua vez, ao que está fora e dentro de si próprio.
Sem serem autofágicas, as fotografias de David Infante tendem para a auto-suficiência narrativa, mas não o isolamento, nem tão-pouco a depuração de sentido. São muitas vezes labirínticas na forma e no jogo perceptivo e muito enredadas no conteúdo. A variedade de géneros com que Infante trabalha (retrato, auto-retrato, paisagem) serve para ampliar ainda mais o universo do seu programa fotográfico rumo a uma complexa teia de referências, que vão desde um espaço pessoal e reconhecível até aos mais abstractos e dispersos contornos geográficos. Desde a mais íntima expressão do rosto até à sua negação enquanto veículo privilegiado de contacto de quem olha para quem é olhado.
Quase não há, aliás, retratos puros e directos na fotografia de David Infante. A representação da figura surge difusa, muitas vezes enleada em transparências, reflexos e sombras com intenções claras de ilusão e escape à armadilha da fidelidade fotográfica. Com máscaras ou sem elas, o retrato de Infante nunca é aquilo que é – transporta-nos para lá da expressão da face, pede-nos segundas leituras, nunca se fica pelo maravilhamento do olhar. Tenta dizer-nos que a identidade é múltipla, muito mais escorregadia e polissémica do que tendemos a acreditar.
A representação do humano, liberta de uma ideia clássica de retrato, é central nestas fotografias de David Infante. É por ela que somos guiados até à figuração do espaço ou até à definição de lugar, território criativo onde o fotógrafo mais arrisca quando procura encontrar os lugares do próprio lugar. Trata-se deum exercício que se socorre da carga simbólica da história (da sua e da de outros), da emoção, da vivência pessoal e da experimentação lúdica e insólita desses lugares. Uns ficam ainda mais alicerçados aonde sempre estiveram, redobram as noções de espacialidade, dramatismo e simbolismo que deles guardávamos. Outros conseguem libertar-se da dimensão em que foram captados para encontrar simplesmente novos territórios do visível, novos espaços, muito mais alegóricos, muito mais descomprometidos das limitações do geográfico.
Encontram-se nas imagens de David Infante referências, umas vezes mais subtis outras mais pronunciadas, a ideias e exercícios estilísticos experimentais que seduziram os fotógrafos desde sempre – sombras, transparências, sobreposições, colagens, reflexos, arrastamentos. Num tempo em que se diluem e se misturam todos os recursos e suportes criativos, é uma opção corajosa que não só satisfaz um propósito de interpretação metafórica da realidade, como serve para afirmar duplamente o suporte fotográfico e todo o seu registo histórico.
David Infante não sai do campo da fotografia, no sentido restrito do termo, e não esquece um fotógrafo: José Manuel Rodrigues, com quem trabalhou e com quem aprendeu boa parte do que é capaz de fazer com a máquina e com a câmara escura. É essa talvez a mais importante referência do seu trabalho. A partir dela Infantesoube incutir uma multiplicidade de sentidos aos lugares, às pessoas e às coisas. A partir dela soube ampliar o campo criativo. A partir dela soube também extrair uma sensibilidade muito particular que encontra hoje um lugar próprio na fotografia. Assim desenvolveu um olhar que se manifesta na escolha apurada das formas, das texturas e das superfícies. Que encontra na dinâmica e na força sugestiva dos materiais um valioso manancial de composição. E que cria singulares jogos de transfiguração graças ao uso perspicaz das diferentes camadas de leitura proporcionadas pela representação do corpo e do rosto.
David Infante não é um fotógrafo de pessoas, nem um fotógrafo de lugares – é um fotógrafo da condição e da procura do lugar do humano. É um fotógrafo que escolheu a deriva e a contradição – como a morte coberta de branco.
Sérgio B. Gomes
Lisboa, Outubro de 2008